Roça e cevada

Pai e filho contam sobre a construção de valores comunitários e sua relação com um empreendimento de cerveja artesanal

A voz mansa, o jeito tranquilo de contar as histórias… Tanto Pedro Delmonte quanto seu filho do meio, Dian, têm o mesmo ritmo na fala e, depois de conversar com os dois, a gente tende a exclamar quase sem querer “Nossa, como são parecidos!”. Nos relacionamentos familiares é comum que se herdem trejeitos e alguns gostos uns dos outros. Mas na história de Pedro e Dian isso foi bem além destas similaridades e rendeu um empreendimento promissor de cerveja artesanal, com ingredientes regionais, ancorado na agricultura familiar e no amor pelo campo. 

Pedro Delmonte e Hélène Arthur Delmonte se conheceram cursando Biologia no Fundão, como é conhecida a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), localizada na Ilha do Governador. Pedro conta que naquela época muita gente comungava do sonho alternativo de comprar um terreno no interior e foi assim que, em 1982, chegaram até Campo Redondo, bairro rural de Itamonte, na Mantiqueira de Minas Gerais: “Mais parecia um cenário do século XIX, não tinha luz, a estrada era péssima, mas a gente achava tudo o máximo”, ri. Naquele início a ideia do casal já era a de subsistência e a de plantar alimentos sem veneno: “Eu brinco dizendo que eu era orgânico mas não sabia que era assim que chamava, era tudo agricultura natural, pois ainda não tinha selo, não tinha certificação, nem legislação”, explica.

Com o passar dos anos, o casal foi criando seus três filhos e construiu na propriedade – chamada de Sítio Kouit, que significa arco íris em um dialeto boliviano – pequenas agroindústrias, onde processam alimentos orgânicos plantados ali mesmo. Hoje, o cardápio de produtos é extenso e envolve geleias, molhos, conservas e diversos alimentos desidratados. Durante todo este tempo a relação de amizade e respeito com a comunidade permeou a família: “Sempre procuramos o sentido de dar uma força para as pessoas que estavam precisando, de não passar em cima de ninguém, saber que estamos todos no mesmo barco”, reflete Pedro.

Dian com pai, em 2002

Apesar de Dian ter saído pra estudar e, inclusive, ter morado um tempo no exterior, a escolha por uma vida na roça passou tanto pela opção de uma cotidiano com mais qualidade de vida, quanto pela admiração desta relação construída na comunidade. “Tudo veio pelo exemplo dos meus pais, minha mãe como educadora e artista trabalhava na escola dando aula de inglês e educação artística e meu pai, que sempre atuou na parte da produção, montou uma cooperativa dos produtores de leite, insistindo num novo conceito de coletividade para essa região”, enaltece Dian. 

Cerveja com gosto de tradição regional 

Imbuído de seu espírito criativo para desenvolver novos produtos, Pedro quis também começar a produzir cerveja e comprou um kit de produção com um amigo, mas a ideia não ia pra frente. Dian chegou pra dar ânimo ao processo e conseguiram fazer a primeira brassagem, que é a combinação dos ingredientes, juntos, no final de 2016: “Era tudo bem improvisado e experimental, seguindo uma receita pronta que veio com o kit, um livro que ganhei da minha irmã sobre cerveja e alguns vídeos no youtube”. Mas o que era experimental foi despertando mais interesse no jovem e Dian resolveu investir: “Vi que era uma coisa legal que eu queria de fato fazer, fiz um curso no Rio e comecei a melhorar os equipamentos e fomos crescendo”, diz. 

O amor pela região se expressou tanto nos ingredientes quanto na própria construção da identidade e da marca da cervejaria, batizada de Garrolê, denominação dada ao povo original do Campo Redondo e Região, proveniente de uma única família, a família Fonseca. Dian contou que apesar de todos dessa região serem admirados por sua receptividade e carinho com os visitantes o termo Garrolê já envolveu muito preconceito e só agora vem sendo motivo de orgulho. O “Garrolê” é um dos muitos vocábulos da comunidade que foram criados por uma forma peculiar de se expressar e, como explicam em seu site, a história conta que certo dia uma senhora levou o seu filho ao médico, pois o mesmo estava passando mal e ao chegar ao consultório, nervosa e com fala rápida, explicou que seu filho tinha chegado da escola, “comeu garrolê e passou mal”. Não entendendo, o médico pediu para que ela explicasse melhor e então ela disse: “Doutor, ele chegou da escola almoçou e agarrou a ler um livro. Daí passou mal”. A partir dessa história todos ficaram conhecidos como Garrolê.

Pausa pra pose no preparo da cerveja

O que poderia ser motivo de chacota foi justamente o gancho que Dian usou para valorizar a linguagem local e batizar todos os estilos das 4 cervejas que produzem hoje.  A “Breô”, que é uma cerveja escura maltada,  significa o mesmo que “sujou”, como no exemplo “Fulano breô a roupa tudo”, ou seja, fulano sujou toda a roupa. O termo “Benguê” que se refere à forma de pegar algo muito pesado, usando uma haste para dividir o peso para duas pessoas – “isso está muito pesado, tem que pegar de Benguê” – serviu pra batizar o estilo chamado Belgian Tripel. Para nomear a Pale Ale da cervejaria, escolheram o vocábulo “Caçoano” que vem do verbo caçoar e é o mesmo que zombar e achincalhar. Por fim, fechando a carta de cervejas, a Bassuai se refere a um vão debaixo dos assoalhos das casas antigas e foi escolhida pra IPA, um estilo famoso que é o India Pale Ale. Dian faz questão de dizer que os nomes começaram como uma brincadeira, mas que envolvem muita seriedade: “A intenção na verdade é valorizar esta cultura, que foi sempre um trabalho desde que meus pais vieram para cá, e fortalecer a comunidade mesmo”, afirma.  

Apreciando uma Breô

Em relação aos ingredientes, Dian também se inspirou no pai que já havia valorizado o pinhão, fruto da araucária, uma árvore típica da região, produzindo farinha de pinhão, pinhão desidratado, entre outros produtos, e também levou a árvore para dentro do estilo. “Eu queria dar ênfase na matéria prima local, mas queria que fosse algo diferente do pinhão em si mesmo e alguns amigos comentaram que o broto do pinhão é uma PANC (planta alimentícia não-convencional) e tive um estalo que o perfil resinoso aromático do broto cairia muito bem na cerveja”, conta. Na mesma linha, ele já prepara um novo estilo com base em outra árvore da região, ingrediente que ainda é segredo. 

Apesar de Pedro dizer que o empreendimento é do filho e que só dá pitacos, Dian afirma que o exemplo do pai na valorização dos produtos e da região que escolheram pra morar fez toda diferença pra sua vida e suas escolhas: “Como diz meu pai, a gente pode se ajudar e crescer junto”, orgulha-se.